Prof. Dr. Irany Novah Moraes
A medicina é ciência e arte, como duas faces de uma só moeda; a primeira fundamenta-se na anatomia, fisiologia e fisiopatologia… a segunda, na relação médico paciente e no bom senso.
Há algum tempo, quando ainda existia segurança em São Paulo, e os médicos podiam atender pacientes em suas residências, fui chamado por uma família de origem alemã, que morava nos arredores de Santo Amaro.
Ao chegar, deparei-me com um idoso, com isquemia grave do membro inferior, abatido, com intensa dor em repouso, sentado no leito, abraçando sua perna sofredora, flexionada e passando a mão lenta e suavemente sobre o pé frio e pálido.
O prognóstico estava fechado pelo médico da família, que propôs amputação a nível da coxa, mas, alertando a família que o perigo de vida era iminente e que o risco era muito grande.
Após exame detalhado e minucioso, reuni a família na sala, longe do paciente e perguntei: o que os senhores esperam diante da situação? Para uma breve reflexão e, com a desculpa de lavar as mãos, deixei-os a sós.
De volta em silêncio, aguardei a resposta. Uma das filhas tomou a palavra e disse: meu pai irá completar noventa anos em exatamente um mês. Todos nós queremos comemorar a data. O primeiro bisneto vai nascer na próxima semana, ele próprio falou várias vezes que desejava tanto conhecê-lo.
A gangrena era iminente, o estado geral não era dos melhores. Muito fraco, desidratado, desnutrido e com aquela idade provecta! Eu, partilhando da dor dos que ali estavam presentes, fiz minhas reflexões sobre as limitações da medicina e comecei contar, a título de lenitivo, uma história.
Lá pelos primeiros anos do século XX, exatamente em 1910, um médico de origem alemã, mas residente em Nova Iorque, idealizou uns exercícios para melhorar a circulação do pé. Esses exercícios deram tão bons resultados que passaram para a literatura com seu nome, e até hoje, são chamado, “exercícios de Burger”.
Todos os presentes quiseram imediatamente saber do que se tratava. Expliquei que embora muito simples para fazer, mas difícil em realizar com eficácia, pois exigia o sacrifício de toda a família e muito tempo! Com voz uníssona dos presentes: queremos fazer.
Recomendei que primeiramente fizessem uma lista de todos que participariam do programa e qual o horário disponível. Imediatamente a lista estava pronta e, aos poucos, os horários disponíveis estavam sendo completados.
As explicações complementares e os medicamentos foram prescritos e explicados um a um – todos a seu nível entenderam com clareza.
Iniciei os exercícios, e pessoalmente fiz junto com cada um dos presentes. Deixei-os fazendo os exercícios e já seguindo a escala. Periodicamente ia visitá-lo, e lentamente o paciente alimentava-se sem restrições, nem reclamações, deixou de sentir dor e começou a melhorar.
O aniversário chegou, ele estava bem, alegre, encantado com a bisneta.
Ao pé do leito, falando bem baixinho, perguntei: de todos os remédios que eu havia prescrito, em sua opinião, qual deles, a seu ver, foi mais eficiente? Ele parou, pensou, e começou se desculpando, doutor o senhor me pede para dizer a verdade, é que eu tenho a certeza que me curou, e não me fez desapontar a família, foi falar todos os dias ou noites com todos os meus netos, meus filhos, e saber o quanto eles gostam de mim! Ver minha bisneta, trouxe muita alegria!
Uma noite, ainda no começo do tratamento com o senhor, sonhei que a morte abrira a porta de meu quarto e num momento vi a família toda reunida e com todas as forças empurrando-a para fora de meu quarto.
Acordei com a melhor das sensações, viveria mais. O amor que minha família me dedicou estava prorrogando meu tempo de vida. Sinto muita felicidade.
A última notícia que tive desse paciente é que a família já havia comemorado seus noventa e um anos, e todos, filhos, netos e bisnetos continuavam a vê-lo diariamente.