Prof. Dr. Irany Novah Moraes
Muita ocorrência imputada como erro médico nada mais é do que a evolução natural da doença.
É com satisfação que inicio o novo ano colocando nas vitrines das melhores livrarias do país o livro Erro Médico e a Justiça. É a 5 a edição de uma série, completando assim a trilogia do erro médico, constituída por: Erro médico, 1 a edição, 1990; Erro médico, 2 a edição, 1991; Erro médico e a lei, 3 a edição, 1995; Erro médico e a lei, 4 a edição ,1998 e agora Erro médico e a justiça, 5 a edição, 2003.
Essa publicação ressalta o significativo trabalho da RT – Editora Revista dos Tribunais, no panorama da cultura jurídica do país, que domina a arte de colocar a disposição de toda a comunidade interessada e, mais ainda, nas mãos dos universitários e assim, atingir hoje o profissional de amanhã, consciente de que o futuro chegou, e é amanhã, de manhã.
O assunto em pauta deve ser bem estudado pelos advogados, seja da defesa, da acusação,bem como do promotor de justiça, dos juízes e dos desembargadores, dos jornalistas e evidentemente pelo médico. Papel relevante para minimizar o problema é, que esses três pilares – advogado, médico e jornalista – estejam profundamente envolvidos na problemática do erro médico e tenham idéias claras da matéria, para encontrar a verdade de cada ocorrência.
O médico exerce uma profissão de alto risco e o destino coloca em seu percurso armadilhas que somente a competência e a devoção ao trabalho podem desarmar. Perigos inusitados estão sempre de tocaia! O êxito do trabalho não depende exclusivamente dele, mas também de múltiplos fatores que independem de sua vontade. O malogro dos resultados que às vezes lhe atribuem decorre do fato de o doente ou seus familiares projetarem nele seu inconformismo com a crueldade do destino e a limitação da medicina. A divulgação ampla da insatisfação de resultados pertinente ou não a casos indiscriminados feita pela mídia tem gerado confusão quanto ao que realmente seja erro médico. Ainda pior são os malefícios decorrentes do abalo da confiança do paciente no médico, que é fundamental no processo da cura. Não fosse o suficiente, a generalização expande para toda a classe e não poupa ninguém. Assim, todos passam a duvidar dos médicos e, mais grave ainda, fica em jogo a própria medicina brasileira.
É de bom alvitre que todos se inteirem bem do assunto, para que saibam discernir o falso do verdadeiro, sem se deixar levar pela emoção na interpretação dos fatos publicados e geralmente até mesmo alardeados. Para ser bem entendido, deve ser analisado, por três vertentes, a saber: do paciente, do médico e do juiz.
Quanto à primeira – a visão do paciente -, a simples frustração de seus anseios pode fazer-lhe supor que o médico tenha errado. A segunda – a visão do médico – por sua vez, lutando permanentemente contra a morte, sente a limitação da medicina. A terceira – a visão do Juiz – é extremamente técnica pois é atribuição da justiça dirimir as dúvidas sobre o comportamento dos indivíduos dentro da sociedade. O paciente, pode reclamar ao Conselho Regional de Medicina ou ainda recorrer a Justiça comum, para no caso de ser comprovado erro médico pleitear o ressarcimento do dano.
Para uma clara separação entre o que seja real e imaginário, é conveniente lembrar que a caracterização do erro médico fundamenta-se na culpa e sua reparação na responsabilidade do médico pelos seus atos. Nesse contexto a Justiça exige três premissas, a saber: 1. existência do dano (óbito, mutilação, etc.); 2. participação do médico e, 3. comprovação de nexo de causa e efeito, ou seja, prova de que o dano foi produzido pelo procedimento do referido médico. Uma vez estabelecidos esses pré-requisitos, há de ser comprovada uma ou mais das três condições seguintes: negligência (displicência, desleixo, preguiça); imperícia (incompetência), e imprudência (procedimento feito com aflição, sem cautela).
Não há procedimento profissional isento de risco
O organismo humano, cujo equilíbrio funcional é extremamente complexo apresenta elevado grau de vulnerabilidade. Para agravar tal situação some-se a doença. Assim, qualquer procedimento médico ou da enfermagem, com vistas a aliviar a dor ou mesmo preservar a saúde, pode, eventualmente, levar o paciente à morte. Tal desfecho pode ocorrer sem que haja culpa de ninguém, basta que o organismo venha a reagir de maneira anômala ao remédio. Tal fato decorre dos segredos da vida, ainda não desvendados pelo homem.
Pode-se dizer que há riscos inerentes às doenças bem como outros aos próprios métodos terapêuticos. O progresso, pelo melhor conhecimento da essência dos processos de cura, tem diminuído muito a incidência desses problemas, aumentando a segurança do tratamento. Entretanto, por outro lado, o mesmo progresso está possibilitando diagnósticos mais precisos e criando métodos mais delicados para tratar cada vez mais idosos com doenças mais graves até então, tidos como “desenganados”.
Evidentemente, nem todos os doentes são passíveis de cura. Muitos são portadores de doenças graves em estágios avançados e sem perspectivas de recuperação. Há situações em que a doença é tão grave que sua evolução natural é para a morte.
Dentre os que mais sofrem, estão os portadores de doença crônica e incurável. A cronicidade sugere longo tempo de sofrimento e a incurabilidade sela o destino. Elisabeth Kübler-Ross trata esse tema com muita profundidade.
Perante a referida situação, o paciente costuma reagir de três maneiras: 1- aceita os fatos com naturalidade; 2- aliena-se de seu problema; ou 3- rebela-se.
O primeiro grupo reúne a grande maioria dos doentes. Ao ser confirmada a doença, passam por uma fase inicial de grande tristeza e depois aceitam os fatos com naturalidade e resignação. Esses pacientes cooperam com o médico e com a enfermagem, levam a sério o tratamento e, sem reclamar, vão se ajustando às novas condições de vida. Procuram encontrar seus limites e buscam atividades alternativas. Eles costumam demonstrar grande vontade de viver e têm satisfação nos menores progressos e alegrias em todas as conquistas.
O segundo grupo é o daqueles que, não aceitando a situação, fingem ignorá-la. Comportam-se como se não soubessem o que têm, nem a sua gravidade. Chegam a nem querer saber o nome do próprio médico que os trata. Quando sabem esquecem ou fingem esquecer. Aliás, esquecem mesmo, pois a sua memória apaga o nome que não quer reter, não fala sobre o assunto e não quer se instruir sobre a doença para poder ajudar a si próprio.
O terceiro grupo é o dos que, não se conformando com a situação, rebelam-se contra ela. Em suas horas de intimidade, cada um deles se questiona: por que eu? Não encontrando resposta, revoltam-se contra tudo e contra todos. É fácil compreender que a falta de uma boa estrutura psíquica para enfrentar uma doença incurável. O desequilíbrio nesta situação leva-o a agredir todos, mas, particularmente, o médico e o hospital. O primeiro porque é quem diz o que ele não quer ouvir e prescreve o que ele não quer fazer, e o segundo porque é o local onde acontece o que ele não gostaria que ocorresse.
Há certos casos de muita gravidade, para os quais existe alguma esperança, desde que tomadas medidas tidas como heróicas, muito embora com alto risco. Nestas circunstâncias, é impossível dizer com segurança qual seria a evolução do caso adotando-se o procedimento alternativo.
Neste ponto, algumas vezes, aparecem dúvidas quanto à conduta adotada. Aposteriori, com a evolução não satisfatória de um procedimento, fica fácil criticar e afirmar que outra conduta teria sido melhor.
Devo lembrar, ainda, que, para um ato médico, contribuem vários profissionais de diferentes níveis de qualificação. Todos têm sua participação direta ou indireta no referido ato. A equipe de assistência médica é grande e nela estão envolvidos médico, enfermeira, parteira, assistente social, nutricionista, farmacêutico, dentista, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem, recepcionista, administrador e funcionários administrativos, como porteiro, pessoal da lavanderia, pessoal da manutenção e limpeza. Todos têm sua parcela de contribuição em cada procedimento, conseqüentemente, seu contingente de responsabilidade.
Erro Imaginário
A mídia divulga indiscriminadamente sem caracterizar corretamente toda reclamação como sendo erro médico. É natural que diante da morte de um ente querido, mesmo no malogro de um tratamento ou até ainda a amputação de um membro que gangrenou e que na sua evolução natural pode levar o paciente a morte haja uma crise emocional do paciente ou de seus familiares que perturbe a interpretação dos fatos. Esse ponto deve ficar claro para todos. Vou tratar dos casos onde o médico faz tudo para salvar o paciente entretanto nem sempre é possível. Trata-se da limitação da medicina. A família emocionada muita vez procura lançar a culpa no médico ou até mesmo no hospital.
Inconformismo
O inconformismo do paciente com os resultados por ele esperados da medicina é, sem dúvida, decorrente de uma série de fatores. Alguns podem ser destacados, mas no conjunto eles se entrelaçam e, na verdade, todos encontram na resposta emocional de cada paciente o fator potencializador do seu problema.
A divulgação sem rigoroso critério tem conseqüências maléficas para o médico e para as instituições, mas o mal maior ainda é para o doente. O primeiro efeito negativo que ele determina é o medo que incute na população de todo procedimento necessário de assistência à saúde. O segundo malefício é a incredulidade do paciente na eficácia dos tratamentos. O terceiro, a meu ver o mais grave, é o estremecimento da relação médico-paciente, pelo abalo da confiança do paciente em seu médico. Todos sabem que boa parte da eficiência de um tratamento está na tranqüilidade que a palavra do médico produz no paciente e em sua família, graças a essa confiança.
Até mesmo as boas notícias, de significativos progressos, de êxitos parciais em pesquisas avançadas e de tecnologia muito refinada, quando divulgadas de maneira escandalosa e bombástica são perniciosas, pois dão a impressão, ao menos avisado, de que é fato consumado e de uso corrente algo que ainda está em fase experimental. Mas o malefício desse procedimento está no desenvolver um elevado grau de expectativa para soluções de problemas que, aparentemente, são menores.
Todas as notícias sensacionalistas devem merecer um grau de reserva. Algumas, com certa má-fé, trazem intrinsecamente o germe da desconfiança.
Muita ocorrência imputada como erro médico nada mais é do que a evolução natural da doença. Outros casos são devidos a acidentes inevitáveis, alguns deles até mesmo previsíveis. As complicações, ocorrendo também na evolução das doenças e modificando o seu curso natural, podem determinar seqüelas ou até levar o paciente à morte. Muitos fatos atribuídos a erro médico, na verdade, não o são e podem ser arrolados como inconformismo. O que mais gera essa atitude é o paradoxo entre o enorme progresso contraposto a grandes limitações da medicina e sempre com envolvimento emocional. Veja-se por exemplo, o fato de que na mutilação externa, o paciente sente-se muito prejudicado. Seu defeito é dificilmente escondido ou mesmo disfarçado. Toda essa problemática leva a um irremediável inconformismo. Nessas circunstâncias é que aparece, nos indivíduos psicologicamente mais fracos, a revolta contra o seu destino e o espírito de vingança ou de reivindicação. Eles projetam no médico suas angústias. Assim, nascem os impulsos de imputar ao médico a culpa que ele não tem e chamar de erro a limitação da medicina de não poder tratar tudo com êxito.
Doença Iatrogênica
Iatrogenia é palavra composta, vem do grego: iatrós (médico) + genos (geração) + ia. Assim, trata-se de expressão usada para indicar o que é causado pelo médico mas, por extensão por todos os integrantes do serviço de saúde que participam direta ou indiretamente do procedimento médico. Refere-se não só ao que ocorreu pelo que o médico fez, como também pelo que deixou de fazer e deveria ter feito. É conveniente ficar bem claro que, entende-se também como iatrogênica toda cirurgia mutiladora.
Alguns exemplos de doenças iatrogênicas podem facilitar o melhor entendimento da questão. Vou emprestá-los da cirurgia vascular que, pela sua própria natureza, é extremamente abrangente, uma vez que os vasos, sejam eles sangüíneos ou linfáticos, interessam a toda economia humana. Em tais condições, as operações das demais especialidades podem facilmente gerar lesões iatrogênicas com soluções da competência do cirurgião vascular. A própria especialidade também reclama muita solução heróica e extremamente iatrogênica, assim certos problemas vasculares cujo tratamento por si só implica lesão definitiva. É o caso da gangrena para cujo tratamento é indicada amputação. Esta, por sua natureza, cria outros problemas gravíssimos ao paciente, por determinar grande limitação de função.
Lembro de que todas as artérias e veias podem ser lesadas durante um ato cirúrgico de qualquer especialidade, como acidente cirúrgico, e a conseqüência vai depender da natureza, do grau de lesão e do órgão afetado.
Anomalia é malformação ou deformidade congênita caracterizada por irregularidade do organismo, condição esta que torna o indivíduo diferente dos demais. É indicativa de um desvio do normal. Nos graus mais avançados fala-se em deformidade e, progressivamente, em malformação ou monstruosidade; difere da variação pelo fato desta não causar alterações funcionais que ocorrem na eventualidade anterior. Estes conceitos devem ser claramente compreendidos, já que é de esperar-se respostas diferentes das habituais em pacientes portadores de problemas congênitos. Ressalto para o fato de haver problemas que estão compensados e que não permitem fazer diagnóstico mas que se descompensam quando outros são tratados.
Acidente
A experiência tem revelado que, na maioria dos casos, as questões ficam centralizadas na dificuldade de compreensão do que seja acidente em medicina. Assim vejamos: acidente é a ocorrência não esperada mas previsível. Pode ser um fato traumático ou fenômeno mórbido que ocorre no indivíduo são ou doente. Acidente cirúrgico é, por exemplo, uma secção indesejada de uma artéria durante o ato operatório.
É importante assinalar que, nessa matéria, devem distinguir-se acidente e complicação, dois conceitos relevantes na problemática dos limites de responsabilidade médica. Trata-se de uma intercorrência fortuita, mais inesperada do que imprevisível, que pode ocorrer no processo diagnóstico como no terapêutico.
Neste ponto podem ser lembrados os casos decorrentes de acidentes anestésicos, radiológicos e cirúrgicos. Em medicina, como no trânsito, não se espera que o acidente vá ocorrer, mas admite-se que ocorra. Há operações que põem em alto risco certas estruturas que, uma vez lesadas, podem desencadear seqüelas, algumas delas deformantes ou produzindo disfunções. Assim, tumores da glândula parótida podem envolver o nervo facial e, por mais cuidado que o exímio cirurgião tenha, ele pode ser lesado. Tratando-se de simples manipulação, a seqüela pode ser temporária; entretanto, traumatismos maiores podem causar seqüelas permanentes, resultando numa assimetria facial pela retração contralateral.
Implicam também acidentes os casos que se seguem. Em operação em local delicado, embora com toda habilidade e cuidado do cirurgião, a fragilidade do tecido poderá levá-lo a romper-se e inviabilizar aquele ato. Uma sutura em artéria extremamente friável, feita de acordo com a mais correta técnica, com a maior habilidade, se os pontos se rompem, inviabilizam também aquele ato. Outro exemplo é o envolvimento de um vaso por um tumor maligno que se quer extirpar: a adesão entre ambos é tal que, para retirar o tumor, o cirurgião lesa a artéria.
Alguns destes casos permitem uma reparação imediata da intercorrência. Tais fatos ocorrem com maior freqüência do que se possa imaginar, mas a elevada capacidade do cirurgião supera a dificuldade e se rotula a operação como operação difícil.
Lesões acidentais do nervo recorrente podem ocorrer nas tireoidectomias, com perturbação definitiva da fala. Há de se considerar a profissão do paciente e imaginar o transtorno que lhe causa, no caso de ser cantor ou mesmo professor. Nas cirurgias do pescoço ainda podem ser lembradas as lesões acidentais do nervo frênico, com o conseqüente rebaixamento da hemicúpula diafragmática com possíveis perturbações respiratórias.
Compreende-se que a modernidade esteja trazendo a cada momento novas oportunidades diagnósticas bem como terapêuticas e que tragam embutidas também outras chances de complicações. Estas, por serem ainda pouco conhecidas, tornam-se menos previsíveis o que em nada diminui a probabilidade de ocorrência. Para exemplificar esse fato, e, assim, torná-lo melhor compreendido, basta lembrar o novo processo de tratamento dos hemangiomas pela embolização. Trata-se de técnica imaginada em 1980 e que, pela sua recente utilização na prática, faz que poucos especialistas tenham grande experiência, o que não permite que se tenham grandes estatísticas para se estimar em números os acidentes esperados e nem as complicações. A resposta do organismo pode ser maior que a desejada, às vezes pelo simples espasmo arterial, desencadeando isquemia também das áreas adjacentes, o que pode causar seqüelas indesejáveis, tornando o resultado final precário. É difícil para o paciente entender o malogro desse processo como acidente, tendendo, geralmente, a considerá-lo como um erro médico.
Esses exemplos foram aqui referidos para lembrar que tais lesões são causadas pelo médico a partir de uma escolha feita entre riscos e benefícios. O paciente, nas situações especiais diante de um diagnóstico, tem de saber que existem estruturas nobres que, às vezes, por mais cautela que se tenha, identificando-as e afastando-as com muito cuidado, ainda assim não suportam o leve traumatismo de um afastador delicadíssimo. Conhecendo claramente tais riscos, cabe a ele optar entre os riscos de não se tratar, deixando que a doença progrida na sua evolução natural, e a mutilação ou a disfunção possível, mas não esperada, que pode resultar do tratamento. Nos casos em que a mutilação é o tratamento, a situação já é outra.
Complicações
É o aparecimento de uma nova condição mórbida no decorrer de uma doença devida ou não à mesma causa. É muito freqüente uma doença crônica, ter, na evolução natural, surtos de agudização, vir a apresentá-los precisamente durante o tratamento. Eles ocorreriam de qualquer maneira, com ou sem tratamento apenas por infelicidade, sobreveio no decorrer do tratamento. Pode-se exemplificar com um paciente portador de arteriosclerose que, no decorrer do tratamento de uma gangrena, falece com infarto do miocárdio no dia da alta hospitalar. A doença existia, era sistêmica. Ele superou a amputação, mas uma artéria coronária ocluiu. É oportuno citar aqui, ainda, a evisceração, complicação que ocorre nos doentes mal nutridos no pós-operatório de uma cirurgia abdominal. A sutura rompe-se e as vísceras ficam expostas. Lembre-se que mal nutrido não é só aquele que passa fome, mas também o que come errado ou faz regimes sem adequada orientação. Outros exemplos, talvez até mesmo mais drásticos do que estes, podem ser lembrados para ilustrar na essência esse aspecto do problema. Lembre-se o caso da radioterapia após operação do câncer e, depois dela, a quimioterapia que, para matar as células cancerígenas, atacam profundamente o doente, com muitas seqüelas, prejudicando sobremaneira a qualidade de vida do paciente.
Complicações de difícil entendimento para o leigo – A evolução natural de algumas doenças pode apresentar intercorrências difíceis de serem entendidas. Assim, vejamos o que ocorre, não raramente, na pediatria. Crianças com quadro clínico diarréico agudo podem apresentar, no decorrer de sua evolução, isquemia de braço ou de perna, devido a septicemia com embolia séptica ocluindo pequenas artérias levando à isquemia e até mesmo à gangrena da extremidade.
Este fato causa tal impacto na família que o inconformismo pode desencadear reclamações judiciárias pleiteando indenizações para reparação de imaginário erro médico.
A família, na reconstituição dos fatos para formulação da queixa, lembra pequenas intercorrências plausíveis de acontecerem no decorrer do tratamento de casos graves. Assim, aparece o braço que inchou na aplicação do soro ou quando foi contido na grade do berço. Esses fatos causam muita estranheza para a mãe e familiares, principalmente porque ocorrem com um ente querido, num momento de grande aflição.
O pediatra, bem como o cirurgião vascular, que cuidam do doente e têm conhecimento teórico de medicina, entendem o que está ocorrendo, como e porquê. Entretanto, devem ser ressaltadas outras ocorrências de responsabilidade da família. A mãe que não quis ou não pôde amamentar, o desmame que foi precoce e a alimentação artificial que não foi seguida corretamente. Desmame precoce e alimentação artificial inadequada costumam ser fatores predisponentes na doença diarréica aguda.
Reclamações judiciárias de casos semelhantes pecam pela base, pois não se pode caracterizar erro médico, não há nexo causal entre os procedimentos do médico e o aparecimento do dano ao paciente.
Erro deliberado para prevenir mal maior
Ocorrem situações graves nos hospitais quando se verifica um quadro agudo de choque hemorrágico em que a transfusão de sangue se impõe imediatamente e o Banco de Sangue dispõe do sangue, mas devido a falta de tempo hábil os resultados das provas sorológicas para afastar Sífilis, Aids, Moléstia de Chagas e Hepatite B não se completaram. O hospital tem o sangue compatível, mas não sabe se o sangue tem ou não aquelas temidas doenças; entretanto, se o doente não receber a transfusão, morre.
Configura-se assim um perigo iminente de vida e a solução é a transfusão. O médico deve ministrar o sangue e salvar o doente do choque, pois o mal maior sobrepõe-se ao outro que, além do mais, é duvidoso, pois os exames podem ser negativos.
O médico pode seguir duas condutas: 1- não ministrar o sangue para não correr o risco de estar ele contaminado e, 2- ministrar o sangue, correndo o risco de estar transfundindo também doença. Na primeira alternativa, se o doente falecer, o médico pode ser acusado de omissão de socorro e, na segunda, se o sangue estiver contaminado, ele poderá se acusado de negligente ou imprudente.
Diante dessas soluções conflitantes, o médico deve aplicar o sangue e salvar o doente, mas para precaver-se de problemas posteriores, no caso de o paciente vir a ter qualquer doença decorrente daquela transfusão, deve comunicar por escrito ao juiz o seu procedimento.
A família deverá acompanhar de perto a dificuldade e assinar o documento, atestando estar de pleno acordo com a conduta do médico e assumindo a responsabilidade na decisão. Tal procedimento isenta o médico de qualquer culpa. O documento de autorização da família para esse procedimento não é suficiente para evitar que o médico venha a ser vítima de reclamações futuras por parte daquela mesma família que naquele momento concordou com a solução apresentada.
Problemas dessa natureza ocorrem com maior probabilidade em cidades do interior, em que o intercâmbio ou o socorro mútuo entre os bancos de sangue é mais difícil. Nas capitais a via para se chegar ao juiz é o delegado de plantão.
Falhas técnicas
Esse tipo de erro exige, para melhor compreensão, que se faça analogia com os das profissões da área de ciências exatas, em que a falha técnica é peculiar à máquina. Como o médico presta serviços, e estes são independentes da máquina, a falha no seu procedimento depende, por um lado, da competência, da viabilidade, da dedicação individual e, por outro lado, da resposta do doente. As primeiras, as que dependem exclusivamente do médico, são chamadas de técnicas. A rigor, elas deveriam ser chamadas de falhas do técnico. Este problema, posto dessa maneira, ressalta o contingente a mais de responsabilidade que é atribuído ao médico, pelo fato de estar ele trabalhando com um aparelho muito peculiar construído pela natureza – o corpo humano. Assim, entende-se o porquê de, inadvertidamente, tais falhas serem imputadas ao médico. Elas, na verdade, dependem da resposta do aparelho com o qual ele está trabalhando, exatamente quando este não está bem e apresenta defeitos produzidos por causas, muitas vezes, mal conhecidas.
Estas chamadas falhas técnicas foram assim caracterizadas com o progresso e pode-se dizer que sejam restritas ao médico da era científica. Se hoje a medicina é uma ciência com toque de arte, no estudo do erro médico ela deve ser encarada, em primeiro lugar, como rigorosamente científica. Aqui o erro deve ser quantificado e assim pode ser definido. Todavia, o fato de poder ser medido não permite esquecer que o biológico é absolutamente inexato, uma vez que muitos segredos da vida ainda são desconhecidos.
Erro escusável ou erro profissional
Se o erro só pode ser estimado pelo resultado, o médico só deve responder pelo que depende exclusivamente dele e não da resposta do organismo do paciente. Neste ponto há uma sabedoria da nossa Justiça, que estabelece o contrato médico/paciente como de meio e não de fim. Dessa maneira, salvaguarda o médico de responsabilidade pelo que não deu certo por causa do paciente, seja pelo que ele não fez como lhe foi prescrito, seja pelo fato de o seu organismo não ter reagido como se poderia esperar.
Parece estranho distinguir erro médico de erro profissional, entretanto, tal distinção tem sido feita principalmente por parte dos juízes. Eles costumam caracterizar o erro profissional como sendo aquele que decorre de falha não imputável ao médico e que depende das naturais limitações da medicina, que não possibilitam sempre o diagnóstico de absoluta certeza, podendo confundir a conduta profissional e levar o médico a se conduzir erroneamente. Cabem nessa classe, também, os casos em que tudo foi feito corretamente, mas em que o doente omitiu informações ou até mesmo sonegou-as e, ainda, quando não colaborou com a sua parte no processo de diagnóstico ou de tratamento.
Diante das situações relacionadas, o erro existe, é intrínseco às deficiências da profissão e da natureza humana do paciente e ocorre no exercício da profissão, mas a culpa não pode ser atribuída ao médico. Tais erros são também chamados de escusáveis.
A oportunidade de ocorrer erro médico está em todo o decurso do relacionamento médico/paciente, do primeiro contato ao último, pela alta, abandono do tratamento ou óbito. Todo procedimento técnico traz em si, embora corretamente feito, uma possibilidade de resposta adversa.
Veja-se que, por parte do paciente, toda interpretação dos fatos vai depender de como o médico os apresenta. Daí a importância de ele depositar absoluta confiança no médico. Esta vai depender de sua fama, adquirida pela freqüência de acertos nos casos graves da população que ele assiste e vai predominar sobre a competência, que o profissional só pode demonstrar para seus pares, seja na vida acadêmica, científica ou nas sociedades médicas ou no relacionamento com os colegas.
Serviço médico é contrato de meio
Convém lembrar, ainda, que a relação médico/paciente é regida por um contrato implícito de prestação de serviços. Embora não seja por escrito, o simples fato de o paciente procurar o médico e esse o atender é suficiente para que tal contrato se firme. Entretanto, reveste-se de certas pecularidades. Trata-se de contrato de meio, pelo qual o médico se obriga a cuidar do paciente e não, necessariamente, curá-lo. O médico deve, por esse contrato, propiciar ao doente o melhor que a medicina pode oferecer, considerando ocasião local e circunstâncias.
Os direitos individuais dos paciente devem ser respeitados, sem que, entretanto, sejam esquecidas as recíprocas, ou sejam, as obrigações dos pacientes de seguir rigorosamente as prescrições, procurar ajudar a si próprio, empenhar-se no entendimento do próprio problema, mudar de médico se não tiver confiança.
A natureza do contrato especial de meio é o divisor de águas entre o erro médico e o erro imaginário. Assim para evidenciar onde se pode enquadrar cada um deles a elaboração da tipologia de cada um resolve de maneira didática a matéria.
Tipologia
Vou articular, de maneira objetiva, os pontos críticos dos dois temas a que este artigo se propõe.
ERRO MÉDICO:
1- Provocar dano intencional – erro doloso (crime)
2- Devassar dados do paciente – quebra do sigilo médico
3- Causar dano sem querer – erro culposo
4- Não fazer o que devia – negligência
5- Fazer o que não devia – imprudência
6- Fazer errado – imperícia
ERRO IMAGINÁRIO: 1- Limitação da medicina – incoformismo 2- Mutilação (eletiva ou de urgência) – iatrogenia 3- Acidente de percurso no procedimento – risco profissional 4- Complicação – intercorrência inesperada 5- Anomalias anatômicas – respostas paradoxais 6- Variações anatômicas – respostas diferentes das convencionais 7- Falhas técnicas – falta de respostas do organismo 8- Erro escusável ou Erro profissional – protegido pelo contrato de meio |
Conclusão
O tema deste artigo mostra, de maneira clara e convincente, quanto é importante o médico, o jurista, o jornalista e o cidadão em geral, terem idéias claras dessa problemática para fazer ele próprio o julgamento dos êxitos e dos malogros que a medicina moderna pode propiciar.
Do exposto fica evidente que todos devem ter opinião própria sobre o assunto. O estudo científico do erro médico, tendo em vista seus aspectos legais, permite a compreensão da problemática em sua essência, dando subsídios para reflexões que conduzam à verdade dos fatos.
Todos, doentes, familiares, médicos, juristas, jornalistas, clérigos, legisladores, a seu modo, devem dar sua parcela de contribuição para ajudar a minimizar o problema. Esta é minha contribuição.
Ninguém pode esquecer que quanto maior for nosso conhecimento, maior será a consciência de nossa ignorância.