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Inimigo Íntimo

 

Prof. Dr. Irany Novah Moraes

 

Uma pequena soma que se empresta, faz um devedor, uma grande soma, um inimigo.

S ÊNECA

Certa feita, o Professor Renato Locchi fez um testemunho interessante. Contou que Bovero, ao ser vítima de um gesto de ingratidão, sem alterar-se, comentara: “O homem é assim mesmo; estranho seria comportar-se de forma diferente”. Era grande sua elevação espiritual. Tornou maior o contraste de comportamentos: o do aluno ingrato, e o do mestre indulgente. Foi assim que se tornou claro o significado essencial da recomendação de Claparelli: “Ser rigoroso consigo próprio e benevolente para com o próximo”. Eis aí uma prédica que exige muito desprendimento, pode colocar-se mesmo ao lado do ensinamento cristão que manda oferecer ao agressor a outra face.

Ao longo da vida, os fatos vão se somando. Alguns de gravidade maior, outros, menor; em sua essência, porém, repetitivos. Não trazem novidade no que diz respeito ao comportamento humano. O progresso, a avalanche do conhecimento, os recursos modernos da ciência e da tecnologia, o milagre da comunicação transformam a vida mas, no íntimo, o homem não muda, continua com defeitos e virtudes próprios de sua natureza. Na verdade, esse aperfeiçoamento pode fazer-se em dois sentidos diversos, acentuado, de um lado, o bom, o bem, o verdadeiro, e de outro, o mau, o mal, o falso. Dir-se-ia que as qualidades se aprimoram e os defeitos se reforçam.

O médico, pelo estilo de vida que a profissão oferece, tem, a propósito do humano, uma intuição mais viva, mais profunda e apurada pelo convívio com a dor e com o sofrimento.

O exercício da prática médica, levando a um contato diuturno com o doente, propicia ao profissional o acesso o recôndito da alma em tal profundidade que nenhuma outra profissão atinge.

Nesse convívio, as gratificações emocionais são tantas e de tal magnitude, que fazem a ingratidão parecer mais terrível, mais dolorosa; por vezes, estranhamente incompreensível.

Entretanto, felizmente, as experiências positivas, de sincero reconhecimento, é que prevalecem, inumeráveis; elas envolvem rico e pobre, adulto e criança, sem fronteiras de sexo e de raça.

Para ressaltar a dificuldade que o médico tem em absorver e aceitar atos de ingratidão, relato aqui um caso pessoal, bem ilustrativo das muitas gratificações emocionais e das incontáveis alegrias do exercício de tal profissão.

Atendi certa vez a um doente que havia sido operado de urgência. Era uma criança que se havia acidentado com uma faca, presa à cinta, ao brincar em sua fazenda. O caso era gravíssimo e exigiu restauração da artéria femoral na raiz da coxa. Havia perigo de vida ou de perder o membro, dada a natureza da lesão. Tudo resolvido, a criança teve alta, com orientação para praticar esportes e evitar acidentes que pudessem acarretar traumas ou machucaduras naquela perna. Em seguimento ao tratamento, meses depois, a recomendação para nadar foi enfatizada. A criança esboçou um sorriso muito feliz. Levantou-se, enfiando a mãozinha no bolso, tirou uma medalha e ofereceu-me. Havia ganho o prêmio num campeonato de natação. Cumprimentando-a, devolvi-lhe a medalha. Em atitude de extrema felicidade ela falou: “Não doutor! Ganhei esta medalha para o senhor.” Esta medalha, completando um cartão de Natal, em que seus pais externaram profundo reconhecimento, está colocada em um quadro e guardada, como símbolo material de um sentimento, a gratidão.

Ela é um exemplo da espontaneidade pura de uma criança. Para o paciente era a condecoração de uma vitória; para o médico, um troféu de emoção.

Pra quem se acostumou com experiências como a relatada, torna-se difícil aceitar a ingratidão, embora se possa entendê-la perfeitamente. Aliás, na sua interpretação, vale lembrr Trebla que, delicadamente, a tratava como uma das mais conhecidas formas de amnésia.

Conforme J. Normand, a incidência desse sentimento no homem diz respeito a uma das mais povoadas províncias da alma.

José de Alencar, escrevendo sobre a matéria, refere-se aos ingratos comparando-os com as varejeiras; assim como estas empeçonham o corpo que as nutre, os desagradecidos, muitas vezes, vendem os protetores que os agasalham.

Para Duclos, a ingratidão tem sua origem na insensibilidade, no orgulho ou no interesse; eu acrescentaria aí, também, na inveja.

Com perspicácia, Condorcet lembra que a ingratidão, filha do interesse e da vaidade; é o vício das almas pequenas. E Shakespeare, sucintamente, define a ingratidão como fúria com coração de mármore.

Interessante, porém, é que, no Dicionário de Masucci, logo após a palavra ingratidão vem o vocábulo inimigo e, nesse verbete, aparece uma frase que inspirou certas elucubrações. Elas talvez expliquem mais intimamente o mecanismo desencadeador desse sentimento.

A frase de Sêneca, apresentada como epígrafe mostra o fulcro da questão. Quanto mais se fizer por alguém que não merece, mais difícil será para ele retribuir à altura do que lhe foi oferecido. Em sua incompetência material, física ou moral, o beneficiado vai sentindo sua inferioridade. Sua consciência o impele a tornar-se merecedor dos benefícios. Este fato gera conflito íntimo. Há um bombardeio constante em sua consciência. Duas alternativas se apresentam. O indivíduo reconhece o benefício e se torna grato ou assume a atitude inversa. Esta decisão rompe a proteção de sua dignidade. O modo mais fácil para aliviar a tensão gerada pelo drama de consciência pela posição adotada é encarar seu benfeitor como inimigo. Nesse momento, as dívidas desaparecem para ele, pois não as reconhece mais, chega mesmo a esquecer-se delas. é a amnésia de Trebla. E, na realidade, os fatos só têm comprovado esta análise. A ingratidão é moléstia aguda que se torna crônica. O ingrato não se vai tomando aos poucos assim. Ele tem uma atitude súbita, inesperada, de rebelião contra seu benfeitor e, daí por diante, toma-se dele um inimigo crônico. Eles causam tristeza, pois confirmam a degradação dos que foram íntimos e queridos.

Há, porém, casos melancólicos, de pessoas amigas com faces ocultas que, às vezes, acabam assumindo atitudes jamais esperadas. Há história de dívidas muito grandes, insaldáveis, simplesmente; estas, quando de ambos os lados os espíritos não elevados, acabam por desunir almas fraternas, destruindo até mesmo uma amizade de muitos anos. Na verdade, quem pode, seguramente, sondar os abismos profundos do coração do homem?

O nível de educação, o grau de cultura ou de esperteza, podem, às vezes, mascarar o comportamento durante certo tempo; mas não se pode enganar muitos por muito tempo e, mais dia, menos dia, os interesses pessoais, a vaidade, ou ainda, a incapacidade de reconhecer no outro a benevolência, rompem a barreira da dignidade e a alma se abre, revelando seu íntimo.

A propósito, mais uma vez a sabedoria popular, em máxima de extrema simplicidade, mas contundente, traduz a essência do problema: “O dia do benefício é a véspera da ingratidão”.

Finalizando, eu me pergunto, de novo, sobre o homem, essa desafiadora incógnita, nunca inteiramente explicada: por que havia de ter razão Bovero e, com ele, a voz do povo, um e outro absolutamente seguros da reação humana, diante da generosidade do outro? Seria impossível para o homem aprender a aceitar o gesto gratuito e, tão somente, devolve-lo gratuito, novamente, se ver nele uma dívida ou uma carga?

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