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Via Anatômica

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Prof. Dr. Irany Novah Moraes

Todos os que foram alunos do Prof. Renato Locchi têm registrado em sua memória, de maneira indelével, a sensação nítida de quando atravessaram os umbrais do templo da medicina. Vou “emprestar” ao leitor minhas lembranças daquele momento.

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O Laboratório de Anatomia da Casa de Arnaldo teve, com Renato Locchi, um período pujante. O ambiente era marcado por intensa vocação para o trabalho, criando assim o clima perfeito para a pesquisa científica. Tornou-se o pólo de atração para os cirurgiões que encontravam, na Anatomia, o local propício para aprimorar-se na especialidade, mas, além disso, aprender a pesquisar. Quem pretendesse fazer um trabalho científico ou uma Tese de Doutoramento tinha um orientador competente e sempre com extrema boa vontade para ensinar. Tal foi a magnitude atingida que a Fundação Rockefeller reconheceu-o como centro de excelência para treinamento do anatomista, e passou a exigir, de quem desejasse bolsas de estudo no exterior, que fizesse previamente um estágio naquele Laboratório.

Não paira a menor dúvida que o padrão “A”, atribuído pela Associação Médica Americana à Casa de Arnaldo, em 1952, teve na Anatomia uma de suas pedras angulares.

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A condução do leitor pela “Via Anatômica”, com breves paradas em cada uma de suas “estações”, propiciará fácil compreensão do significado daquela Escola e de seu poder de influenciar gerações de médicos. Convido-o a acompanhar-me, relembrando o primeiro dia do curso médico, iniciando pela Aula Magna ministrada por Renato Locchi. Alertava para o intensivo e adequado aproveitamento do tempo, que passava muito rapidamente para permitir conhecer todo o corpo humano, de maneira suficiente para ser médico.

Chamava atenção especial para o fato do “material” didático da anatomia ser muito diferente dos demais, por tratar-se de cadáver humano. No transcorrer da aula e num gesto repentino, ele descobria a mesa de mármore onde repousava o corpo de uma negra de 28 anos, dando, a cada ano, a aula inaugural.

O impacto desencadeado pela exposição abrupta do cadáver impressionava profundamente o jovem. Mas sua mente entrava em conflito para, derelance, entender o tempo de vida e o tempo de morte. A jovem de face delicada, semblante triste, plácido, fixado em formol há mais tempo do que teve de vida, estava permanentemente imutável.

Locchi, com palavra erudita, de timbre vibrante, acompanhada de gesticulação incisiva e viva – pela obsessiva busca da verdade e grande esperança na juventude, cristalizada pelo respeito ao cadáver – marcava esse momento na memória do jovem. O aluno tinha a sensação de estar entrando em um mundo místico, onde a morte estava presente para ensinar os segredos da vida. Ele aprendia a respeitar os restos mortais, fragmentados pela dissecção, como sendo parte do corpo de seu semelhante. Evidenciava-se a crueldade da vida que pela vicissitude o colocara na condição de “peça” para estudo. Restava ainda a impressão do destino estar cruelmente cobrando, depois da morte, o ônus que, talvez em vida, ela tivesse causado à sociedade injusta que a colocara na condição de indigente. Aquelas circunstâncias marcavam para o futuro médico seu início na luta sem trégua contra a morte. O momento era conduzido graças à fulgurante personalidade de Renato Locchi e duas enormes forças se conflitavam: a vigorosa energia da juventude ali presente, atenta e perplexa de um lado, e a frieza da morte do outro. O aluno sentia-se como se estivesse participando do ritual de sua iniciação para o sacerdócio da medicina.

Registre-se que a característica do sacerdócio é o trabalho devoto. Aquele era o momento de decisão: viver para a medicina.

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Estações da via anatômica – Após a aula, procedia-se a visitação ao Laboratório:

1. A Sala de Bovero – A sala do Professor Alfonso Bovero era mantida como ele a deixara. Lá estavam: seu longo avental, amarelado pelo tempo; o apontador e a mesa de trabalho. A visita a esse local era feita com respeito e em absoluto silêncio. Dava a impressão de se estar em um Altar de uma Catedral.

2. Busto de Bovero – A memória de Bovero, mantida permanentemente pelo seu busto de olhar severo, estrategicamente localizado no saguão do Laboratório, garantia a sensação de sua onipresença naquele ambiente.

3. Biblioteca – A biblioteca da Anatomia estava no roteiro de visita dos alunos. Locchi exibia o acervo, com orgulho de mostrar o mais valioso monumento de culto a seu fundador. Inicialmente, ele apresentava a coleção de livros raros. Mostrava a seguir a coleção de Índices e Catálogos usados para a pesquisa bibliográfica, no campo da Anatomia. Gabava-se das coleções estarem completas e sem nenhuma falha. A seguir indicava a estante dos trabalhos clássicos. Extrema satisfação se evidenciava quando entrava em um recesso da Biblioteca onde, em altas estantes e em prateleiras corretamente classificadas, estavam caixas contendo a mais rica coleção de separatas de publicações de pesquisas. Bovero havia iniciado meticulosamente essa coleção de documentos e Locchi vinha contribuindo permanentemente para sua atualização.

4. Museu de Peças – A estação seguinte da “Via Anatômica” era o Museu de Peças, cuidadosamente iniciado por Bovero e com a participação de todos os anatomistas que trabalhavam naquele Laboratório. Museu riquíssimo em peças das mais variadas preparações. Há muitas diafanizadas, representando centenas de horas de trabalho. A coleção de peças do sistema linfático é preciosa; há também muitas conservadas por diferentes métodos. Integra seu acervo uma coleção de mil e quinhentas peças, constituídas de línguas e laringes, minuciosamente catalogadas quanto ao grupo étnico, sexo e idade. Uma coleção de máscaras de gesso de índios brasileiros faz parte do patrimônio do Museu.

5. Museu de Ossos – A outra parada ocorria no Museu de Ossos, onde mais de uma centena de esqueletos completos estão catalogados em gavetas adequadas. Dois comentários eram feitos: um mostrando um crânio de adulto negro masculino, onde as arcadas dentárias estavam completas e íntegras e outro, numa vitrine adquirida na Alemanha, com a reprodução de um esqueleto de feto com todos os seus ossos, incluindo os ossículos do ouvido médio, e, em seguida, mostrava outra semelhante, feita por um funcionário do Laboratório que, embora não dispondo de formação alguma, tinha grande habilidade, muita dedicação e amor ao que fazia.

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Presença do mestre – Locchi, com sua exuberante presença, transmitia a enorme energia de sua personalidade e o fulgor de seu intelecto. Dotado de raciocínio lógico, palavra fluente e precisa, em frases concisas, transmitia com brilho especial sua mensagem, que abria os horizontes para os jovens.

Quem conviveu com Locchi aprendeu a admirá-lo. Seu enorme respeito e grande veneração por Bovero faziam crescer, analogamente, algo semelhante em relação a ele. Aqui parafraseio DiDio quando cita Sêneca dizendo: Admire um homem de alto caráter e tenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele o estivesse observando e agindo como se ele ditasse suas ações.

Eu também encontrei Locchi.

Termino com outra citação do mesmo autor quando lembra Henry Van Dyke, dando a idéia da correlação entre o tempo e as emoções:

 

O tempo é

muito lento para aqueles que esperam;

muito rápido para aqueles que temem;

muito longo para aqueles que choram;

muito curto para aqueles que se rejubilam;

mas, para aqueles que amam

O tempo é a eternidade.

 

Locchi está em cada Estação da Via Anatômica e no coração de muitos privilegiados – seus admiradores.

 

* * * *

A Esperança

 

A Esperança não murcha, ela não cansa,

Também como ela não sucumbe a Crença.

Vão-se sonhos nas asas da Descrença,

Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;

No entanto o mundo é uma ilusão completa,

E não é a Esperança por sentença

Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,

Sirva-te a crença de fanal bendito,

Salve-te a glória no futuro – avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,

Também espero o fim do meu tormento,

Na voz da morte a me bradar: descansa!

Augusto dos Anjos

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